Frente a este quadro de permanente renovação, é fundamental que tenhamos a plasticidade necessária para nos adaptarmos às novas demandas sociais. À universidade, por sua posição vital na sociedade, não se pode permitir estagnar. Devemos repensar o seu papel na orientação e formação de indivíduos, compreendendo que a sua relação com o conhecimento não se encaixa mais num padrão binário de interpretação. Quando tratamos do saber, não existe uma cisão entre possuidores e despossuídos, porque não há uma única moeda. As formas de conhecimento, de técnica, de experiência, se multiplicam na mesma proporção em que se complexificam as relações entre os indivíduos.
Por esta razão, uma universidade já não pode mais ter seu status reduzido à condição de simples lócus de produção do saber. Darcy Ribeiro foi o primeiro a chamar atenção para a formação de uma consciência crítica e emancipatória como princípio estruturante da UnB, que não foi concebida para servir a ?um ato de fruição erudita ou de vaidade acadêmica?, mas sim para ?montada no conhecimento, pensar o Brasil como problema?. (RIBEIRO, Darcy. Universidade para quê? Discurso pronunciado durante a cerimônia de posse do Reitor Cristóvam Buarque, em 16 de agosto de 1985)
Dadas as novas e presentes circunstâncias, é preciso dar um passo adiante. Devemos agora pensar como questão também a América Latina e sua íntima relação com a África. É preciso fortalecer uma identidade local para fazer frente ao atual quadro de dominação ocidental que ainda carrega o peso das relações coloniais. Somente assim é possível que os indivíduos que respondem a estas nacionalidades desloquem o seu referencial simbólico e saiam da periferia para o centro de suas próprias perspectivas.
Uma das ferramentas de substancialização do processo de formação identitária é a valorização de formatos autóctones de arte e cultura. São essas expressões simbólicas que, compartilhadas, perfazem uma realidade comum. No universo da linguagem, são estes os signos que permitem aos indivíduos se identificar como membros de uma mesma comunidade.
Ora, a universidade é por excelência um campo para a disseminação destas manifestações da linguagem, e, para que não seja perdido, seu potencial deve ser organizado em propostas práticas de ação. Assim é que, para operacionalizar a função institucional de apoio ao desenvolvimento deste substrato simbólico e para possibilitar uma integração entre todas as comunidades que possam se relacionar através do seu espaço, a Universidade de Brasília teve a honra e o dever de lançar, no último dia 11 de novembro, a reedição do Festival Latino Americano e Africano de Arte e Cultura (FLAAC), previsto para coroar a celebração dos 50 anos da UnB em 2012.
A proposta do festival vem resgatar a continuidade de uma bem sucedida experiência da gestão de Cristovam Buarque, devolvendo à utopia seu lugar nos horizontes da universidade. Suas primeiras edições, em 1985 e 1987, distribuíram obras, performances e manifestações por todos os espaços culturais disponíveis, rompendo os limites geográficos que segregam academia e cidade. Brasília tornou-se assim um pólo de concentração de saber cujo efeito interfecundante do convívio entre artistas e intelectuais oportunizou o desabrochar de uma vanguarda cultural na América Latina.
O caráter do FLAAC ultrapassa muito o âmbito da estética. Não estamos falando de uma simples vitrine dos produtos da recém admitida pluralidade cultural. Mais do que revelar conteúdos simbólicos, o FLAAC vai possibilitar um encontro no tempo e no espaço. Será o lugar de uma conformação sócio-histórica única, que produzirá uma nova estima para os sujeitos coletivos ali representados.
É, sobretudo, um espaço para o exercício da democracia e da emancipação, com capacidade de projeção sobre trajetórias individuais e coletivas. Não ganham somente os estudantes da universidade, que terão contato com um formato de educação global completamente novo em relação aos padrões normativos da academia, mas também toda a sociedade, na medida em que se torna epicentro dessa produção.
Os efeitos multiplicadores da valorização deste tipo de conteúdo são ainda incalculáveis. Em nível microscópico, o que se pode antecipar é que o FLAAC é a oportunidade de estímulo às produções independentes, de criação de redes de contato e de valorização dos sujeitos na sua condição mais humana: através da sua produção simbólica. Uma minoria será compreendida não a partir da ótica da benevolência, mas sim da riqueza incomparável de sua experiência.
Já num nível macroscópico de análise, o que se pode prever é que o reconhecimento da multiplicidade de relações entre os países latino-americanos e africanos criará, a partir da universidade, a possibilidade de instalar África e América Latina no cenário ocidental não mais como simples consumidores da teoria que deve orientar sua prática, mas sim como produtores de saber e condutores de seu próprio desenvolvimento.
O FLAAC se apresenta como a oportunidade de compreender que não há distinção valorativa entre formas de conhecimento, entre manifestações de saber, entre domínios de diferentes técnicas ou mesmo entre diferentes expressões de arte e cultura. E este não se trata de um posicionamento relativista simples. O respeito a outras culturas não se reduz a uma opção feita pelos mais generosos. Existe antes uma equação muito funcionalista. A sobrevivência de nossa espécie não depende somente da preservação do meio ambiente, mas também da diversidade de formatos de ação humana, da preservação do meio social, que está diretamente ligada à emancipação.
* Layla Jorge é socióloga graduada pela UnB.